sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O balanço de madeira - Cinthia Kriemler


     Faz muito tempo que não venho aqui. Com um pequeno esforço vou lembrar exatamente quanto tempo faz, mas, por ora, um barulho vindo dos fundos chama a minha atenção e me atrai.
     Deixe ver se ainda me lembro... Quarenta e sete passos da porta da sala até o quintal. Mas, se eu der passadas largas, consigo reduzir quatro ou cinco. Enquanto coloco um pé depois do outro no friso reto do ladrilho, me recordo de quando Joana e eu apostávamos quem chegava primeiro ao balanço de madeira. Eu sempre ganhava, embora soubesse que era uma aposta sem sentido. Com nove anos, minhas pernas eram maiores e mais firmes, mas apesar disso Joana insistia em competir.
     Durante anos foi assim, até que, numa manhã de chuva branda, eu a encontrei sorridente, me esperando no balanço. Foi aí que notei que ela havia crescido e era mais alta, mais magra e mais ágil do que eu. Mas meu desaponto não durou um fôlego, porque Joana, com sua voz aquecida, apenas me olhou e disse. “É muito chato chegar na sua frente! Eu  gosto de te encontrar me esperando.”
     Se eu pudesse saber, teria percebido que aquela frase se tornaria uma verdade constante nos anos que se seguiriam. Eu, embora mais velha, passei a vida competindo por alguma coisa e me deixando magoar pelas perdas. Joana, dócil, encarou os problemas com naturalidade e fez das conquistas um evento corriqueiro, elegante. Nem quando ficou viúva, com dois filhos pequenos, ela se queixou ou esmoreceu.
     Alguém deixou uma torneira aberta. Meu ouvido é afiado para o barulho de água. Talvez eu deva ver o que é... Não. Estou muito cansada e preciso de um banho antes de me encontrar com as pessoas.
     Enquanto minhas pernas tentam subir o primeiro lance de escadas, o passado grita:
     - Luiz! A água da bica está escorrendo! Quebra a mão se fechar?
     Tonha ainda está viva! Essa voz meio rouca, meio falsete é inconfundível! Quantos anos ela deve ter agora? Setenta e dois, setenta e três, eu acho. Num minuto a água para de escorrer, mas ela continua os  resmungos contra meu sobrinho:
     - Muito preguiçoso! Não sei quem foi que você puxou! Se acostumou mal porque a Tonha está aqui pra fazer tudo, não é mesmo? Tonha cozinha, Tonha lava, Tonha arruma a cama, Tonha fecha a bica. Menino mimado!
     A voz se afasta antes que eu tenha tempo de alcançá-la para um longo abraço. A mesma Tonha de sempre, chamando a si mesma na terceira pessoa. Desde que nasci, o rosto negro é a única moldura de que me lembro em volta do meu berço. A mão de Tonha me segurando para andar, o sorriso incentivando minhas bobagens de criança, o cafuné na cama. Nunca entendi como ela sempre foi capaz de se multiplicar entre o fogão, a pia e as brincadeiras que fazia conosco e, anos mais tarde, com os filhos de Joana.
     Minha primeira frustração foi o dia em que perdi a corrida até o balanço para Joana. Os passos que ela aprendera a dar, mais largos e mais rápidos do que os meus, tinham feito mais que ganhar uma corrida: quebraram a minha autoconfiança. E eu me senti cheia de um sentimento que depois aprendi ser tristeza. Tonha, como sempre, estava lá, com as suas lições de vida.
     - Cara feia pra mim é fome – disse ela, tentando me abraçar e me animar. – Acho que um chocolate pode estar perdido aqui no meu bolso, querendo ser mordido por uma menina bonita e cheirosa.
     - Não quero! – respondi com maus modos.
     - Xi! A coisa tá feia mesmo! Nem quer ver o meu chocolate...
     - Não! – gritei.
     - E por que tudo isso?
     - Porque eu perdi para a Joana a aposta de ver quem chega primeiro no balanço.
     - Ah! Só isso?
     - Só?! Eu nunca perdi para ela, nunca, nunquinha!
     - Perdeu hoje.
     - Ih! Para, viu! Pode parar! Até você?
     - Perdeu, perdeu, perdeu.
     Nem meus movimentos bruscos soltaram os braços de Tonha. A cada tentativa, mais ela me abraçava forte.
     - Me solta! Eu tô mandando!
     - E desde quando você manda?
     Comecei a chorar alto, mas não adiantou. Tonha me prendeu até que tudo o que restou foi um soluço entrecortado, sem forças. Só então ouvi de novo sua voz.
     - Perdeu hoje, ganha amanhã. É assim que a vida é.
     - Mas é ruim...
     - É, é ruim. Imagina então como é que foi para a Joana esses anos todos, perdendo, perdendo, hein?
     - Hã, hã. Coitadinha, né? Primeira vez que ela ganha. Esses anos todos perdendo, perdendo... Que horrível, né, Tonha? Foi bom ela ganhar hoje. Pra não ficar triste.
     - Isso mesmo.
    - Amanhã eu ganho de novo.
     - Ou ela...
     Antes que eu emburrasse de novo, Tonha mudou de assunto:
     - Chocolate mole é bom?
     - Não.
     - Então corre e come este aqui porque senão vai virar mingau de chocolate – disse, me entregando minha barra preferida.
    
     Chego, finalmente, ao meu quarto, o terceiro depois do topo da escada. Tudo está impecável, como sempre. O casarão, mesmo velho, possui conforto em cada um dos cinco grandes quartos, todos com suíte, fiação elétrica restaurada e móveis modernos. Mas o que é isso?! Onde está a minha cama entalhada? E o guarda-roupa que fazia par com a cama? Abro assustada a porta do banheiro e vejo que até o armário de laca sumiu. Meu primeiro impulso é descer na mesma hora para perguntar sobre o acontecido, mas a necessidade do banho me vence. De qualquer forma, Joana não parece estar em casa e é melhor perguntar diretamente a ela sobre essas mudanças não autorizadas no meu quarto.
     Enquanto a água bem quente me alivia o cansaço, escuto um carro sendo ligado e, logo a seguir, a voz de Tonha, gritando:
     - Luiz, já tô pra tirar o jantar, menino! Isso é lá hora de sair?
     Deixa guardado que depois eu esquento, Toninha – ele grita de volta.
     Toninha? Essa é boa! Nunca pensei que alguém conseguisse diminuir ainda mais o nome da pobre Maria Antônia.
     Bom, Luiz acaba de sair sem eu ter tempo de falar com ele. Maria Fernanda, minha sobrinha, mora em outra cidade, desde que se casou. Pelo visto, restamos na casa Tonha e eu, mas ela não me viu entrando e é capaz de achar que sou um ladrão. Vou descer e dar um alô.
     O cheiro de peixe grelhado captura meu estômago vazio e um instinto garante que vem acompanhado de purê de batatas batido com ervas ainda de um molho de mel e mostarda. Antes de entrar na cozinha, o barulho de metal de correntes desvia a minha atenção de novo para o quintal. Tenho certeza de que é o velho balanço se agitando em boas-vindas. Desisto do peixe e sigo em direção ao barulho, mas quando abro a porta dos fundos vejo que o balanço está parado. Engraçado... Nem tem vento. Com certeza é minha memória me pregando peças. A volta à casa de meus pais está me fazendo ir e vir no tempo. Sem pressa, me viro novamente para o cheiro divino do peixe de Tonha, mas, assim que dou as costas ao quintal, escuto outra vez o rangido do balanço atrás de mim. Pelo visto, estou mais cansada do que imagino.
     Dentro da cozinha, caminho silenciosamente até Tonha e abraço por trás, estalando um beijo em sua bochecha gorda. Ela se volta e, apalpando o meu rosto, pergunta:
     - Berma?
     De repente, percebo que Tonha não enxerga. Seus olhos sem brilho miram o vazio além de mim.
     - Bernadete, é você mesma?
     - Claro que sou, Tonha. Não me conhece mais?
     - Mas... mas...
     - Tonha, o que foi que aconteceu com os seus olhos? – mudo de assunto para evitar a emoção.
     - Velhice.
     Uma dor de cabeça vinda do nada faz minhas têmporas latejarem; me sinto tonta.
     - Preciso comer alguma coisa, Tonha – peço.
     Em silêncio, ela termina de aprontar o jantar.
     - Sente aí – diz, apontando a mesa como se pudesse ainda enxergar.
     Faço isso, ansiosa por comer o cheiro bom que toma conta da cozinha.
     - Eu ouvi meu sobrinho saindo. Joana também foi passear?
     Ela não me responde e eu não sei por que está tão ranzinza.
     - Tonha, por que é que você está esquisita comigo?
     Sem me responder de imediato, ela põe a mesa e espera eu me servir antes de se sentar ao meu lado.
     - O que é que você veio fazer aqui, Berna? Você sabe quanto tempo faz que você foi embora?
     - Muito tempo... – sussurro.
    - E voltou por quê? Por que agora?
     Por que isso, por que aquilo. Que droga!
     - Tonha, qual é o problema?
     - Você não sabe?
    Agora, estou realmente assustada.
     - Não, não sei de nada!
     - Joana está doente. Está com aquela doença ruim.
     Eu não escuto. Não quero escutar. Não esperei tanto tempo para voltar para encontrar a minha irmã doente! Joana é saudável, mansa, adora a vida, não guarda mágoas. Eu não quero essa verdade! Joana não tem nada!
     - Mentira! Quem disse isso?
     - O doutor.
     - Esses médicos não sabem de nada!
     - É, pode ser. Mas o destino sabe.
     Não tenho tempo para as superstições de Tonha e estou magoada pelo fato de Joana não ter me dito nada só porque eu estava distante.
     - Os meninos sabem?
     - Sabem, mas não imaginam que a mãe está no fim. Joana prefere desse jeito.
     - Pare de falar assim! Eu quero vê-la. Em que hospital ela está?
     - Hospital nenhum. Está lá em cima, deitada.
     - Ela está em casa? Mas que loucura é essa?!
     Sem me responder, Tonha se volta para a pia. E eu aproveito o que se rompe entre nós para subir correndo as escadas, até o quarto de Joana.
     No primeiro instante, só a escuridão me rodeia. Depois de acostumar a vista, vejo primeiro os cabelos castanhos sobre o travesseiro e, em seguida, seu corpo magro coberto pelo edredom pesado
     - Quem é? – pergunta ela com voz sumida.
     - Sou eu. Bernadete.
     - Berna! – exclama, desta vez com um pouco mais de vigor.
     - O que é isso, minha irmã? Dando um susto em todo o mundo?
    Ela estica os braços para mim, esperando que as minhas mãos encontrem as dela, trêmulas. Aperto com força aqueles dedos finos e frios, e me aproximo para abraçá-la.
     - Você veio porque eu estou doente, não é?
     - Não, eu nem sabia. Foi a Tonha quem me disse, agora há pouco, na cozinha.
     - Você esteve com a Tonha?
     - Estive.
     Joana parece, de repente, ainda mais sem forças.
     - Eu estou no fim, Berna.
     - Não fale bobagem, Joana! Você ainda vai viver muito!
     - Não, não vou. Senão você não estaria aqui.
     - Eu? Mas eu já lhe disse que nem sabia que você estava doente!
     - Você veio por mim, Berna.
     E antes que eu consiga retrucar, seu corpo magro se aninha com suavidade no meu.
     Num canto do quarto, vejo a silhueta de Tonha, apertando fortemente as mãos.
     - Minha menina descansou, finalmente!
     Quero alcançá-la para enxugar suas lagrimas grossas, mas ela não sabe mais que estou ali.
     De pé ao meu lado, sorridente, Joana me desafia:
     - Aposto com você que chego primeiro ao balanço!
     - Calma, mana. Desta vez, vamos chegar juntas – digo, tomando a sua mão na minha.
     Pouco depois, as correntes do balanço de madeira voltam a ranger, agora num vaivém incessante.

  

        

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Está cantando o quê? - Angela Delgado


     Havia explicado que para refrear os pensamentos que não lhe davam trégua, dera para cantar mentalmente, assim resolvendo o problema do afluxo ininterrupto de ideias.
     Mais do que nunca, tinha que ouvir muita música. Agora, com o duplo objetivo: o de encantá-la como sempre, e o de ter as letras na cabeça, para enxotar pensamentos negativos, que, como é do conhecimento geral, atraem todo tipo de desgraça.            

    ♪ Salve/ Como é que vai / amigo, há quanto tempo/ um ano ou mais/ Posso sentar um pouco /  Faça o favor/ A vida é um dilema/ Nem sempre vale a pena/ Ô/ O que é que há?/ Rosa acabou comigo/ Meu Deus! Por que?/ Nem Deus sabe o motivo... ♪ Voy a guardar mi lamento para cuando yó esté sola…    Desde o dia em que te vi, Juracy / nunca mais tive alegria / meu coração ficou daquele jeito / dando pinote dentro do meu peito... ♪  Oh, Cupido , vê se deixa em paz / meu coração que já não pode amar / eu amei há muito tempo atrás / já cansei de tanto soluçar...   ♪  Il faut savoir encore sourire / quand le meilleur s'est retiré / et qu'il ne reste que le pire / dans une vie bête à pleurer...   ♪ No hables de tu marido, mujer. /Mujer de malos sentimientos,/ ay ay ay ay canta y no lhore/ porque cantando se alegran, cielito mio, / los corazones    Mas que calor, ô, ô, ô, ô,ô  or/ Ala, la, ô, ô, ô, ô, ô, or   Non, je n´ai rien oublié, je n´aurais jamais cru qu´on se rencontrerait / le hasard  est curieux, il provoque les choses/ et le destin un instant prend la pause...”

 

     Haja letras na memória para enfrentar o que teima em nos perturbar! A violência por toda a parte; a preocupação com familiares; o rumo que o país está tomando; o Ministério da Educação fazendo das suas ... ♪ Invisible tears in my eyes/ incredibe pain in my heart/ indestructable memories are passing in review Ai ai, ai ai, tá chegando a hora Eu vou pra Maracangalha, eu vou! / Eu vou de chapéu de palha, eu vou! / Se Anália não quiser ir, eu vou só/ sem Anália, mas eu vou! ♪  Pluft, plact, zum, não vou a lugar nenhum! ♪ I know I said that I was leaving/ But I just couldn't say good-bye./ It was only self-deceiving / To walk away from someone who/ means everything in life to you./ You learn from every lonely day/ I've learned and I've come back to stay./ Let me try again/ Let me try again… Se eu só lhe fizesse o bem/ talvez fosse um vício a mais/ você me teria desprezo por fim/ Porém não fui tão imprudente/e agora não há francamente/ motivo para você me injuriar assim... / Não alimentei o seu gênio ruim/ por isso meu bem, não entendo por que anda agora falando de mim...  Dó ré mi fá, fá fá/ dó re dó ré, ré ré, dó sol fá mi, mi mi/ dó ré mi fá (vale "tudo" para aquietar a mente)  ... I've loved, I've laughed and cried/ I've had my fill, my share of losing / And now as tears subside / I find it all so amusing / To think I did all that/ And may I say, not in a shy way / Oh no, oh no, not me / I did it my way...  O cara que pensa em você toda hora / que conta os segundos se você demora/ que está todo o tempo querendo te ver/ porque já não sabe ficar sem você... Esse cara sou eu / ♪ Detalhes tão pequenos de nós dois/ são coisas muito grandes pra esquecer/ e a toda hora vão estar presentes/ você vai ver ... ♪ Se chorei ou se sorri/ o importante é que emoções eu vivi  One, Two, Three O'clock, Four O'clock rock / Five, Six, Seven O'clock, Eight O'clock rock  ...   ♪ Let´s twist again ♪  Fui ao Tororó/ beber água e não achei/ achei bela morena/ que no Tororó deixei/ aproveite, minha gente que uma noite não é nada / se não dormir agora/ dormirá de madrugada...  
     E assim fui cantando madrugada adentro... ♪  Amanhã de manhã/ vou pedir o café pra nós dois/ te fazer um carinho/ e depois te envolver em meus braços... ♪ Funiculí funiculá  Là-bas, Zorba / dans son pays/ s´élance / il danse le sirtaki / déjà, la joie conduit ses pas... / si tu veux que disparaissent / tes soucis et tes tracas/ vient danser avec Zorba...  E quem não quer a alegria/ e quem não quer felicidade... / é claro que eu quero tudo isso/ e muito mais ... ♪ Era uma casa muito engraçada / não tinha teto/ não tinha nada/ ninguém podia dormir na rede/ porque na casa não tinha parede/ mas era feita com muito esmero/ na rua dos bobos/ número zero !  ♪ Help, I need somebody/ help, not just anybody/ help! 
       ♪ Champagne/ per brindare un incontro/ ricordi c´era stato um invito:/ ´stasera si va tutti a casa mia.../ Cosi cominciava la festa/ e già ti girava la testa.../ Per me non contavano gli altri/ seguivo con lo sguardo solo te/ se vuoi ti acompagno, se vuoi; / la scusa più banale/ per rimanere soli, io e te/ Ma io, io devo festeggiare/ la fine di un amore/ Cameriere, champagne! 
       Cidade maravilhosa/ cheia de encantos mil / cidade maravilhosa/ coração do meu Brasil!
      Quem quiser aumentar o conto é só entrar na roda.





sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Cheiro de paixão - Cinthia Kriemler



Paixão boa tem que estalar de repente. Eu me apaixonei num susto, um desses momentos perfeitos em que o objeto da paixão é que nos encontra e nos possui. Mas uma história só é história se permitir que a conte a narrativa. E o início de tudo ainda é o melhor começo.
     Moreno tinha me arrastado para morar ali havia pouco tempo, repetindo uma mania irritante de mudar de casa quase todo ano. “Se a gente não muda de ares não faz diferença no mundo”, insiste ele, “Criou raiz, se acomodou.” Grande coisa! E o afeto pelo lugar, o cheiro das coisas, as trilhas... Não contam? O mentiroso não criava raiz por motivo bem menos filosófico: o preço dos aluguéis.
     Nem com os gritos de “Anda, Fred!” nem com a dose extra de ração, nem com a promessa de uns dois ou três bifinhos de carne prensada eu levantei minha barriga do chão para deixar a casa antiga. Mas, como disse, fui arrastado até o carro, e do carro até um portão branquinho bobo, e do portão... huum... do portão às possibilidades! Duas batidas com as patas e aquele empecilho branco e bobo desabrochava numa rota de fuga.
     Pronto, eu já gostava do ali; um vira-casaca de primeira! Principalmente depois das seis da tarde, quando Moreno montava no jipe para ir dar aulas e me deixava de presente o rebuliço das ruas além do portão. No segundo dia de redondezas exploradas é que me deparei, de repente, com aquela paixão que lhes revelei antes da hora.
     Um cheiro delicioso de... de... de coisas deliciosas me impediu de virar à esquerda na esquina. Segui em frente enfeitiçado, captado pela mistura de aromas que ora me pareciam frango, ora porco. Podia jurar que até mesmo um carneiro ao molho de hortelã me passou pelas narinas arreganhadas. Fosse o que fosse, eu já despejara arabescos de baba e fungados pela calçada. Depois de um pouco mais de chão, no entanto, foram os cheiros que me abraçaram todos de uma vez, e eu sabia que tinha alcançado o paraíso!
     Quatro mesas descascadas de metal azul, rodeadas por cadeiras cambetas, cochilavam inabitadas na calçada. Um único degrau as separava da parte interior do boteco, cujo balcão reluzente contrastava com a cor duvidosa do piso de cerâmica. E lá de dentro, de depois do balcão, me corrompiam aqueles cheiros apaixonantes que os primeiros glutões iriam abocanhar dentro de dois ou três quartos de hora.
     Mais tarde, quando Moreno começou a frequentar o local às quintas-feiras, noite da sua fuga na universidade, eu aprendi com ele que o nome do meu paraíso era Fecha Nunca. O boteco abria as portas durante os sete dias da semana e nem madrugada de chuva assustava os clientes, que corriam com as mesas para dentro, se espremendo entre o degrau e o balcão dos cheiros. Só que Moreno é um passante em minha história.
     Voltemos, portanto, ao nosso primeiro encontro, meu e do estimado Fecha Nunca. A primeira estratégia era saber como seriam recebidos os cachorros por ali. Memórias prudentes e doloridas me trouxeram de volta alguns pontapés e baldes de água que meu couro enfrentou em estabelecimentos semelhantes. Cautela, Fred, cautela! Um latidinho baixo, espremido, e duas abanadas de rabo. Contato feito, é preciso esperar para saber como vai reagir o gorducho com cara de dono. Só há duas saídas: ou gosta de mim, ou me põe para correr.
     O primeiro afago veio na orelha. Ai, ui, que gostoso, meu ponto predileto! Depois no papo, e no dorso e novamente na orelha, só que na outra. Em seguida, um naco suculento de carne foi parar entre as minhas patas. Um cavalheiro, um verdadeiro cavalheiro! Pensando bem, quem é gorducho aqui? Um pesinho de nada acima e eu, maldoso, apelidando o sujeito de gordo! Que falha imperdoável com um amigo já tão querido!
     A primeira noite no Fecha Nunca foi inesquecível. Assim como a segunda, a quinta e a vigésima primeira. Não tinha noite sem carnes ou afagos. Depois de duas semanas, Seu Claudionor – meu amigo e proprietário do estabelecimento – colocou até uma vasilha de água pra mim, num cantinho do chão. Todo o mundo me passava a mão e eu, vadio e escancarado, dava e sobrava a barriga para quem quisesse apalpar, como fruta de tabuleiro.
     Seu Claudionor ficava intrigado porque eu sempre aparecia no início da noite e ia embora à mesma hora, um pouco depois das dez e meia. E como me tratava feito gente, insistia sobre isso, cismado. Tentei explicar, mas apesar da nossa tanta afinidade, não entendeu: não é cachorro. Ele só compreendeu a precisão dos meus horários depois que Moreno, já então cliente habitual do Fecha Nunca não só às quintas feiras, mas também aos sábados e feriados, lhe descreveu sua rotina de professor universitário. Meu amigo nunca entregou as minhas fugas, nem Moreno pareceu perceber a intimidade com que me cercavam os fregueses. Seu Claudionor aprendeu, daquela data em diante, que meu nome era Fred.
     Confesso que no começo dessas farras noturnas me senti um desonrado. Não tinha ninguém ali que não me achasse um vira-lata, um largado. Tenho certeza de que a comida e os afagos eram dirigidos ao cão que eu não era: um desvalido de rua. Sou um cão tratado, tenho casa, comida, quintal e um dono que não troco por nada no mundo, apesar de doido, doido. Mas como resistir à tentação das carnes? Como virar as costas para tantas mãos, tantos assovios? Quanto ia com Moreno, me deitava um pouco longe dele, fingindo nos conhecermos apenas da vizinhança. Afinal, ele sabia meu nome e o “Vem cá, Fred” era sempre um risco ao meu disfarce de coitado. Mas um boteco tem regras que ninguém viola, e a principal delas é o ´viva e deixe viver.´
     Não me envergonho mais da omissão de identidade. Respondem por meu fingimento as delícias que Seu Claudionor prepara no pecado do cheiro e do sabor. Respondem em parte, no entanto. De verdade mesmo, devo mais culpa às tais mãos e assovios que me adulam.
     Por expiação, preciso lhes revelar que uivo e morro por um carinho, por qualquer carinho! Corpo esparramado no chão, patas encolhidas sob a cabeça, olhos virados para cima, os cantos caídos como amêndoas: eis meu segredo infalível de entrega. Sou um mendigo de afetos incorrigível, um chantagista reles! Confesso que sou. E por mais essa confissão me obrigo ainda a outra: larguei para trás os escrúpulos e nada, nada do que puderem pensar de mim me fará desistir de lamber pés cansados, ou de esfregar a cabeça nas coxas macias que me admitem por perto.
  Um cão não aguenta a solidão causada. E essa doença de ausência só tem cura pelo agrado. Pode ser um amor meio sem jeito, uma amizade breve, uma companhia calada, uma fidelidade incerta: aceita-se, incondicionalmente, qualquer um desses remédios! Sou um cão, sou carente.

     Moreno me faz favores quando me muda de casa; me desconforma e me joga em novas empreitadas. Como o Fecha Nunca, onde meu focinho cheira e meu coração se entrega.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O Massacre dos Quirópteros - Luci Afonso



— Mãe, olha o passarinho preto!
— Quieto, meu amor, já vai começar!
O auditório estava lotado. O diretor dava as boas-vindas ao público e
anunciava o primeiro item do programa.

O menino só conseguia prestar atenção no bicho esquisito que
surgira de repente do teto. Parecia um passarinho, mas tinha cara feia
e asas sem penas. Apareceram mais dois e começaram a sobrevoar o palco.

— Mãe, olha! – Desta vez, ela enxergou as pequenas criaturas,
mas não conseguiu identificá-las. — Fique quietinho, meu bem,
é parte do cenário, - mentiu. Estava concentrada no recital.

À medida que transcorria a apresentação, outros saíram do telhado e
passaram a voar também sobre a platéia. O salão estava muito quente
e as portas, fechadas. Algumas pessoas notaram a estranha movimentação,
até que um sussurro percorreu o recinto:
— Morcegos!





A partir daí, o público passou a observar os mamíferos voadores.
Seu número parecia aumentar a cada salva de palmas.
Um casal na última fileira tentou, discretamente, deixar o auditório,
mas a porta principal estava trancada — por medida de segurança,
o zelador só a abriria às 22 horas, quando terminasse o evento.
Ainda eram 20h30min. As portas laterais, por sua vez,
estavam obstruídas pelo equipamento de som.
O casal voltou ao seu lugar em silêncio.

A esta altura, todos acompanhavam o voo das criaturas,
agora mais numerosas. O diretor, ao perceber a apreensão geral,
 tentou relaxar os presentes:
— Estamos com sorte! Para os chineses, os morcegos trazem muita felicidade.
– Como ninguém ali era chinês, não funcionou.
Todos estavam visivelmente tensos,
e alguns já se levantavam para ir embora, sem saber que ainda não poderiam sair.

Para segurar a plateia, o diretor pulou alguns pontos do programa
e anunciou a última atração, o cantor Fred Jr.,
que executaria algumas músicas da Bossa Nova.
Em seguida, passariam ao coquetel.
As pessoas voltaram a se sentar, contrariadas.

Fred Jr., muito conhecido na cidade, sofrera recentemente de síndrome do pânico
e há muito tempo não se apresentava em público. Hoje seria sua volta ao palco.
Não conseguira decorar as letras e ensaiou o tempo todo nos bastidores,
sem perceber o que se passava lá fora. Surpreso,
foi chamado antes da hora combinada.

Entrou, decidido, e já começava a dedilhar o violão
quando notou que algo estava errado. As pessoas olhavam para o alto,
nervosas, e pareciam não notar a presença dele.
Olhou também e sentiu um arrepio. Tinha medo de tudo que voasse,
de mosquito a avião, mas tinha pavor irracional e incontrolável das criaturas
horripilantes que agora enchiam a sala.

Respirou fundo e tentou distrair o público e a si mesmo com uma brincadeira:
— Acho que estão promovendo o filme do Batman! – Ninguém riu. Ele começou a cantar, mas a voz saiu fraca e desafinada. Os morcegos se agitaram, e um deles fez voo rasante na cabeça de Fred Jr. Aterrorizado,
ele largou o microfone e saiu correndo para a porta.
Muitos o seguiram.

— Está trancada! – avisou o casal que tentara escapar.
As mulheres se desesperaram, as crianças começaram a gritar.
Os morcegos se inquietaram ainda mais.
Os homens fingiram controlar o medo.

Um ambientalista argentino subiu numa cadeira
e gritou em portunhol:
— Calma, pessoal, ellos son pacíficos!

Um senhor careca, de óculos minúsculos, pediu a palavra.
Além de apreciador de poesia, era biólogo e
doutor em quirópteros (nome científico dos morcegos).
Para tranquilizar os presentes, explicou que 90% da ordem Chiroptera
eram sementívoros e apenas 10%, hematófagos, ou seja,
era mínima a probabilidade de alguém ali ser mordido.
Além disso, argumentou, os morcegos vampiros, ou Desmodus rotundus,
só atacavam em zonas rurais para se alimentar ou se defender — 
como, aliás, havia acontecido, há poucos dias, num condomínio do Distrito Federal.

A explicação teve efeito oposto: os homens se juntaram,
pegaram a mesa de madeira maciça e
tentaram derrubar a porta.
Aumentaram os gritos e o choro.
O frenesi se instalou entre bichos e humanos.
Os celulares foram acionados para chamar a Polícia, o Corpo de Bombeiros
e o IBAMA.

O auditório se transformou em campo de batalha.
O ambientalista, contrariando seus princípios,
abateu com sua pasta alguns morcegos, para defender as damas em perigo.
Uma poetisa que sempre se apresentava com um cachecol,
aproveitou-o para enforcar uns três.
As mulheres mais valentes usavam seus chales para capturar
e matar os nojentos animais. Os homens recorriam aos paletós.
O menino que os vira primeiro pegou um filhotinho e guardou-o para dissecação,
um de seus hobbies.






Fred Jr. se escondeu atrás do palco,
mas um morcego havia chegado ali antes
e estava à espreita — um Desmodus rotundus, o único na sala.
O cantor, desesperado ao ver tão próxima a repugnante criatura,
tentou atingi-la com o violão, acertando, sem querer, a cabeça do diretor,
escondido no mesmo local. Ambos desmaiaram, um, pelo golpe,
outro, pelo pavor, e o vampiro pôde se alimentar à vontade.

Todos os quirópteros foram abatidos, exceto o Desmodus,
que depois de satisfeito se refugiou novamente no telhado,
à espera de nova vítima.
A porta foi arrombada, e descobriu-se o zelador
em sono profundo no subsolo do prédio. A Polícia e os Bombeiros chegaram
e atenderam prontamente aos dois homens inconscientes,
que tinham dois grandes furos no pescoço.
Eles despertaram, desmaiaram de novo, ao saber que haviam sido mordidos,
e receberam dose preventiva de vacina anti-rábica.
O IBAMA não foi encontrado.

A sindicância instaurada pelos proprietários do auditório
não concluiu de quem foi a culpa pelo incidente.
Muitos a atribuíram ao zelador; outros, a Fred Jr.,
enquanto os estudiosos apontavam causas naturais,
como a baixa umidade e o período de acasalamento,
o que tornaria os quirópteros mais irritadiços.

Não se chegou a laudo conclusivo, mas o evento
ocupou o noticiário nacional por várias semanas
e ficou registrado no imaginário brasiliense como
o mais aterrorizante sarau literário-musical
realizado na Capital da República.